terça-feira, 26 de abril de 2016

em diálogo, a prisão de marcelo caetano


(25 de abril. a cena passa-se no largo do carmo. a tarde já ia alta. uma companhia de soldados comandado pelo capitão maia estabeleceu-se em frente do portão do convento. uma multidão enlouquecida de felicidade grita bem alto palavras impercetíveis. o diálogo que se segue foi inventado por um suspeito  não autorizado.)

capitão maia (batendo à porta do convento):
- abra a porta, se faz favor! eu sou o capitão maia.

gnr-porteiro (desarmado e por detrás da porta):
- vou perguntar ao senhor presidente se posso abrir!

capitão:
- despache-se, homem!

gnr-porteiro:
- sim, meu capitão!

(o gorducho gnr-porteiro arfando sobe a escadaria que dá para a sala  onde marcelo caetano se encontra acompanhado por dois dos seus colaboradores que tremem das mãos como quando os alcoólicos acordam depois de um noite bem regada.)

gnr-porteiro (batendo à porta , entrando na sala e fazendo continência):
- senhor presidente, um capitão pede para se abrir o portão.

marcelo ( sentado e com ar distante)
- nada de abrir o portão! e diga a essa gentinha que desimpeça o largo.

(o gnr-porteiro dirige-se à parte de dentro do portão e começa a bater nele com os dedos. do outro lado do largo ouve-se a voz de um cabo miliciano a chamar o capitão.)

capitão (desgruda-se do povo e chega-se)
- afinal, abres ou não o portão?

gnr-porteiro (muito alto):
- o senhor presidente do conselho disse para não abrir e que o senhor desapareça do largo. olhe, que ele estava com cara de zangado.

capitão:
- ah, ele quer brincadeira! não sabe que tenho de voltar para santarém antes que anoiteça. (o capitão volta-se para a rapaziada e ordena que façam fogo contra a parede do convento.

(tratata-tratata-tratata. ouvem-se  gritos na parte de dentro do casarão. eram provenientes de seis guardas republicanos em quase idade de pré-reforma apoiados nas suas espingardas da primeira grande  guerra. com as rajadas marcelo levanta-se do sofá e dirige-se ao gnr-porteiro que apresenta sintomas de falta de ar.)

marcelo (muito senhor de si):
- guarda, deixe entrar o capitão sozinho e que ele venha falar comigo. tire-lhe a pistola se estiver armado.

gnr-porteiro (aflito):
- mas senhor presidente...

marcelo:
- nem mas nem meio mas.

(o guarda corre a abrir o portão, deixa passar o capitão que vem desarmado e se dirige para o cimo da escadaria onde o aguarda marcelo caetano, que entretanto lhe volta as costas e depois vai sentar-se num velho cadeirão.)

capitão (fazendo a continência dos militares)
- é para dizer a vossa excelência que está cercado por forças revoltosas, as quais querem que o senhor entregue o poder.

marcelo (pondo-se de pé)
- não entrego, não entrego, não entrego! ora essa! depois de tanto trabalho!

capitão.
- entrega a bem ou a mal?

marcelo (expelindo ar das bochechas):
- está bem, meu rapaz. para o poder não cair na rua entrego-o a um grande chefe.

capitão:
- vou ver o que posso fazer. talvez consiga trazer o general spínola.

marcelo:
-ah, o escritor!

capitão:
- senhor, não saia do seu lugar que vou num pé e volto noutro.

(cá fora a multidão grita slogans contra o fascismo e quando  o portão se abre, para deixar passar o capitão, entrou em euforia.)

capitão (de megafone):
- calma, calma! está tudo quase terminado! ele vai entregar-se. foi difícil mas conseguimos mais esta vitória. a demo... (o barulho à volta era ensurdecedor e o resto da palavra foi-se. em 1976, portugal  passou de um regime ditatorial para o regime democrático, não sem antes ter vivido no interregno por experiências malucas.)

e depois, e depois? perguntava a criança ao avô que presenciara a saída de marcelo caetano metido num carro de combate para que o povo não o comesse vivo. depois disse o avô: - fomos para casa jantar porque a tua avó zangava-se muito quando chegávamos tarde para comer. era muito rigorosa e não gostava  de esquentar a comida.




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